domingo, 1 de agosto de 2010

Negrobranco

Enfim, posso considerar o projeto um sucesso.

Não existe um lugar para que eu olhe e não veja a mim mesmo, mesmo que não existam mais espelhos neste mundo. Não, a noção de beleza não existe mais. A noção de diferença, de diversidade, foi há muito esquecida, suplantado pelo advento da mais importante invenção do mundo - a minha. Tudo o que há agora são camisas pretas, camisas pretas e calças jeans brancas por todo lado. Muito do comércio foi abolido, não se vendem mais aparelhos de ginástica, nem Shapewears e muito menos shakes dietéticos. Academias? Escolas? Parques de diversões? Não mais. Tudo estritamente funcional. Funcional e preciso.

Enfim, me congratulo um gênio. A nossa geração (ou deveria dizer a MINHA geração?) é pragmática e opera à vapor total. Fui condicionado a pensar assim desde a infância. Ah, mas o que eles não dariam para que não fossem desse jeito... até a própria alma eles entregariam para que tudo não fosse assim. Eu, *risos*, superei tudo o que eles chamam de modelos. Não existem mais. Tudo o que há agora são clones de mim mesmo. Os que eram diferentes (e que, ironicamente, se esforçavam para sê-lo) estão mortos. Eu matei a todos eles. Nós matamos a todos eles. Não existem mais sexos, não existem mais idades, nem biótipos nem mentalidades. Todos somos perfeitos agora. Não vivemos num mundo de crianças, gênios, bombados e mulheres. Vivemos em um mundo de mim. Compramos o que eu quero comprar. Agora mesmo, estamos todos escrevendo esse texto e vamos publicá-lo no meu jornal, quando terminarmos. Há alguns minutos atrás, jantamos no Clóvis, que estava lotado, como é de praxe (parece até a Lei de Murphy perseguindo-me, apesar de haver mais de 200 restaurantes Clóvis pela cidade), e tivemos todos essa idéia de escrever. E por que não deveríamos? Somos incríveis, geniais! Celebramos, porque agora não existe mais motivo para batalhar. Se eu faço algo, todos farão, e continuaremos sendo iguais para sempre. Ah, me chamaram de louco, não? Pois agora, sou perfeitamente são, enquanto vocês são apenas mortos que permanecem na parcela estruméica de nossa memória. Sua tecnologia ultrapassada, então, insiste em me afirmar que a palavra estruméica não existe. É claro que ela existe! Que absurdo! Acabei de inventá-la, obviamente. E, como tudo o que eu invento, ela se tornou regra, se tornou lei e parte do senso comum.

Mas não pense que só eu dizia que a inversão dos padrões era boa. Não é hilário pensar que não existe mais a divulgação da mídia para você ser alguém diferente? Isso tudo é passado. Somos satisfeitos comigo mesmo. Não existem mais padrões a ser seguidos, modelos a ser alcançados. Eu sou o modelo. Vocês são o modelo. No entanto, os finados do passado afirmariam que eu acabei de criar um novo padrão. MENTIRA! BLASFÊMIA! QUEIMEM-NOS! Porque isso não pode ser um padrão a ser seguido, se somos todos iguais. Vivemos em total contentamento, não? Com nossas camisas pretas e calças jeans brancas. Assim, como espelhos um dos outros. Como poderia ser mais feliz na minha vida, se para todo lugar que olho vejo a mim mesmo? Esse era o meu sonho. É por isso que eu clonei a mim mesmo. E, veja bem, estou por todo lugar agora. No entanto, esse é o único texto verdadeiro. Todos os outros são meras cópias por minhas cópias. Elas tentarão te enganar, te ludibriar, mas eu sou o único, apesar de ser todos.

Esse, como eu já disse, é o meu sonho. Um sonho que se tornou realidade. Um sonho que chega a ser transcendental, pois é agora o sonho de todo o mundo. Embora eu seja o único ser verdadeiro no mundo, o único que tem o controle de tudo e de todos. Afinal, era eu que estava no início, e não outra pessoa da qual me derivei. Senão, como saberia disso?

Não. Eu sou a única verdade.

Eu, as minhas camisas pretas e minhas calças jeans brancas.